Vejam abaixo a entrevista do Lula ao programa Hard Talk da BBC e mais abaixo o balanço do lulismo com Perry Anderson traduzido por Luis Carlos Azenha.
Azenha
Perry Anderson e o balanço do lulismo: mais duradouro que o New Deal?
por Luiz Carlos Azenha
No ano passado o historiador Perry Anderson publicou um ensaio sobre Lula na London Review of Books (íntegra em inglês, aqui).
Tirando um ou outro erro factual (por exemplo, quando diz que Dilma
implantaria um sistema nacional de saúde), o artigo trouxe à tona, lá
fora, um debate recorrente dentro da esquerda brasileira, aquele sobre o
lulismo.
Um debate sempre atual, especialmente quando a persistente crise
financeira internacional e suas consequências no Brasil colocam em jogo a
sobrevivência de longo prazo do projeto iniciado pelo ex-presidente
Lula. Ou não?
O debate, aliás, desperta várias questões.
O lulismo no poder, representado agora por Dilma, dispõe dos
instrumentos necessários para a retomada do crescimento econômico nos
níveis que garantam sua sustentabilidade de longo prazo,
independentemente do que aconteça lá fora? Ainda que disponha destes
intrumentos, não está amarrado ao mínimo denominador comum exigido pela
famosa governabilidade? O PT vai entregar aos parceiros mais
conservadores, que buscam retomar os níveis de lucratividade pré-crise e
estão plenamente representados dentro do governo, a “flexibilização”
das leis trabalhistas, ou seja, a precarização ainda maior das condições
de trabalho? É isso o que explica a busca de Dilma pela classe média,
que reunida ao sub-proletariado lulista poderia facilitar o descarte dos
movimentos sociais organizados que insistem na integralidade da CLT?
Há outras considerações a fazer, não relacionadas ao texto, quando
falamos do futuro papel do Brasil na dinâmica do capitalismo
globalizado: o que o país fará quando amadurecerem os projetos já em
andamento em vários países da África (por exemplo, na Etiópia e em
Moçambique) para incorporar grandes extensões de terra, muito mais
próximas da China, ao agronegócio? E quando o minério de ferro de
Carajás estiver próximo de se exaurir (segundo o jornalista Lúcio Flávio
Pinto, no ritmo atual das exportações vai acontecer antes que o previsto)?
Para contribuir com este debate sobre o passado, o presente e o
futuro da força política dominante no Brasil, o lulismo, destacamos para
tradução um pequeno trecho do ensaio de Anderson, que nos pareceu mais
relevante para a discussão. Neste trecho, ele contrapõe três visões do
lulismo. A primeira, de Fernando Henrique Cardoso, resumimos:
“sub-peronismo”. Em seguida, trata do lulismo na visão dos sociólogos
André Singer e Francisco de Oliveira.
O Brasil de Lula
[...]
Lula não se tornou o Roosevelt brasileiro? O gênio de Franklin Delano
Roosevelt [FDR, presidente dos Estados Unidos 1933-1945] foi
transformar o cenário político com um pacote de reformas que
eventualmente levantou para a classe média dos Estados Unidos, depois da
Segunda Guerra, milhões de trabalhadores e empregados sob pressão, para
não falar daqueles que ficaram desempregados na Depressão. Qualquer
partido que coloca em andamento a mobilidade social em tal escala vai
dominar a cena por um longo tempo, como os democratas fizeram depois que
o New Deal começou, embora a oposição eventualmente se ajuste às
mudanças para competir no mesmo campo, como [o republicano Dwight]
Eisenhower fez em 1952.
Presidindo sob mudanças comparáveis, as vitórias de Lula em 2002 e 2006 [Nota do Viomundo:
Aqui um erro óbvio de Anderson, já que a vitória de Lula em 2002 não
pode ser creditada a mudanças que ele fez] podem ser mapeadas com
estranha proximidade às de Roosevelt em 1932 e 1936: primeiro uma grande
maioria, depois uma avalanche, as classes populares se derramando nas
urnas em defesa do presidente enquanto as classes “respeitáveis” se
voltaram contra ele. Em perspectiva, poderemos ter um ciclo político no
Brasil tão longo quanto o de FDR, dirigido pela mesma dinâmica de
ascensão social.
Olhares no retrovisor em busca de semelhanças com FDR não são novas
no Brasil. [Fernando Henrique] Cardoso também gostava de comparar seu
projeto com a grande coalizão democrata agrupada ao Norte. Lula pode
estar mais próximo, mas os contrastes entre o New Deal e seu governo
ainda estão claros. As reformas sociais de Roosevelt foram introduzidas
sob pressão de baixo, numa onda de greves explosivas e de sindicalização
veloz. Os trabalhadores organizados se tornaram uma força formidável a
partir de 1934, os quais ele teve de cortejar tanto quanto conseguia.
Nenhuma militância industrial comparável sustentou ou desafiou Lula (os
sem terra do campo que tentaram fazê-lo eram muito fracos, sendo o
movimento deles facilmente marginalizável).
Enquanto Roosevelt enfrentou uma profunda crise econômica, que o New
Deal nunca realmente superou, e foi resgatado do seu fracasso apenas
pelo início da Segunda Guerra Mundial, Lula surfou a onda do boom das
commodities numa período de crescente prosperidade. Com sortes
diferentes, eles também eram completamente diferentes em estilo:
Roosevelt o aristocrata que se rejubilava com o ódio de seus inimigos e
Lula o trabalhador que não queria saber de ódio formam um contraste que
dificilmente poderia ser maior. Embora o resultado final de seus
governos tenha sido o mesmo, parece haver pequena conexão imediata entre
causas e efeitos.
Ainda assim, em um ponto existe alguma semelhança. A intensidade do
ânimo contra Roosevelt em círculos conservadores até o início da guerra
era totalmente desproporcional às políticas reais de seu governo. Na
aparência, a mesma anomalia aconteceu no Brasil, onde a aversão de Lula
pelo conflito não teve recíproca. Qualquer pessoa cuja impressão do
governo Lula foi formada pela imprensa de negócios estrangeira ficaria
chocada ao ser exposta à mídia local. Virtualmente desde o início a Economist e o Financial Times ronronaram
de admiração pelas políticas amigáveis ao mercado e a aparência
construtiva da presidência Lula, regularmente contrastada com a
demagogia e a irresponsabilidade do regime de Chávez na Venezuela:
nenhum elogio era demais para o estadista que colocou o Brasil no firme
caminho da estabilidade e prosperidade capitalistas.
O leitor da Folha ou do Estadão, sem falar da Veja,
estava vivendo em um mundo diferente. Tipicamente, em suas colunas, o
Brasil estava sendo desgovernado por um grosseiro candidato a caudilho
sem o menor entendimento dos princípios econômicos ou respeito pelas
liberdades civis, uma ameaça real tanto à democracia quanto à
propriedade.
O grau de veneno dirigido contra Lula não tinha relação com nada do
que ele estava fazendo. Por trás disso estavam queixas mais profundas.
Para a mídia, a popularidade de Lula significou uma perda de poder. A
partir de 1985, com o fim do governo militar, eram os donos da imprensa e
da televisão que na prática selecionavam os candidatos e determinavam
os resultados das eleições. O caso mais notório foi o apoio a [Fernando]
Collor do império Globo, mas a coroação de Cardoso pela imprensa, antes
mesmo que ele decidisse competir, foi menos impressionante por pouco.
A conexão direta de Lula com as massas rompeu este circuito, cortando
o papel da mídia na definição da cena política. Pela primeira vez, um
governante não dependia dos proprietários dos meios e eles o odiavam por
isso. A ferocidade das campanhas contra Lula não poderia ser
sustentada, no entanto, sem uma audiência simpática. E esta era formada
pelas tradicionais classes médias, principalmente mas não exclusivamente
baseadas nas grandes cidades, acima de tudo em São Paulo. A razão para a
hostilidade neste estrato não era a perda do poder, que nunca possuiu,
mas a do status.
Não apenas o presidente agora era um ex-trabalhador sem formação,
cuja pobreza gramatical era legendária, mas sob seu governo as
empregadas, os porteiros e os trabalhadores de manutenção — a gentalha
de qualquer tipo — estavam adquirindo bens de consumo até então
reservados aos brasileiros educados, além de se comportar fora da norma
no dia-a-dia. Para uma boa parte da classe média, foi um choque agudo: a
ascensão do sindicalista e dos serviçais significava que ela estava
perdendo status no mundo.
O resultado foi um onda aguda de ‘demofobia’, como o colunista Elio
Gaspari, um crítico bem humorado, apelidou. Juntos, a mistura de
desgosto político entre donos dos meios e editores e o ressentimento
social entre leitores resultou num caldo bizarramente vitriólico de
antilulismo, sem relação objetiva com qualquer interesse de classe.
Isso porque, longe de causar qualquer dano aos proprietários (ou
credenciados), o governo Lula os beneficiou grandemente. Nunca o capital
prosperou tanto quanto sob Lula. É suficiente citar a bolsa de valores.
Entre 2002 e 2010, a Bovespa teve a melhor performance do mundo,
subindo 523%; agora representa o terceiro maior complexo de
ações-mercados futuros-commodities do mundo. Grandes ganhos
especulativos foram realizados por uma burguesia moderna acostumada a
apostar nos preços de ações.
Para setores maiores e mais avessos a risco da classe média, taxas de
juros no céu deram retornos mais que satisfatórios em simples contas
bancárias.
As transferências sociais dobraram desde os anos 80, mas os
pagamentos da dívida pública triplicaram. O orçamento do Bolsa Família
totalizou mero 0,5% do PIB. Rendas obtidas a partir da dívida pública
ficaram com de 6 a 7%. Receitas fiscais no Brasil são mais altas que na
maioria dos países em desenvolvimento, chegando a 34% do PIB,
principalmente por causa dos compromissos sociais inscritos na
Constituição de 1988, no auge da democratização do país, quando o PT
ainda estava em ascensão como força radical. Mas os impostos
vertiginosamente regressivos foram mantidos.
Aqueles que vivem com menos de dois salários mínimos deixam metade de
sua renda para o Tesouro, aqueles com 30 vezes o mínimo deixam 25%. No
campo, a abertura de vastas áreas para o agronegócio moderno, no
interior, que procedeu rapidamente sob Lula, deixou a concentração da
posse de terras maior hoje que há meio século. As terras urbanas
caminharam na mesma direção.
Relatórios oficiais, sustentados por análises estatísticas e
endossados por agências e jornalistas simpáticos no exterior, alegam que
houve não apenas uma grande redução da pobreza no Brasil nestes anos,
sob a qual não existe qualquer dúvida, mas também uma substancial
redução da desigualdade, com o índice Gini caindo de um astronômico 0,58
no início do governo Lula para um alto 0,538 ao final. Em tais
estimativas, a partir da virada em 2005, a renda dos 10% mais pobres da
população cresceu numa taxa que foi o dobro da dos 10% no topo. Melhor
de tudo, cerca de 25 milhões de pessoas entraram na classe média, que a
partir de então se tornou maioria na Nação.
Para muitos comentaristas, domésticos ou estrangeiros, foi o mais
esperançoso acontecimento do governo Lula. É o pièce de résistance
ideológico nos balanços brilhantes de gente como o editor de América
Latina da Economist, Michael Reid, ansioso para citar a
nova classe média do Brasil como farol de uma democracia capitalista
estável na “batalha pela alma” de um “continente esquecido” contra os
perigos de agitadores e extremistas.
Muito deste aplauso se sustenta num artifício de categorização, pelo
qual alguém com a renda anual inferior a R$ 22 mil (pauperismo em outros
lugares) é classificado como “classe média”, enquanto de acordo com o
mesmo esquema as classes mais ricas — a super elite da sociedade
brasileira, composta por apenas 2% da população — começa com o dobro da
renda per capita da população do mundo. Marcio Pochmann, o chefe do
principal instituto de pesquisa econômica aplicada, tem insistentemente
afirmado que uma descrição mais correta do muito falado novo estrato
médio seria simplesmente “os pobres empregados”.
Mais geralmente, a crença de que a desigualdade no Brasil declinou de
forma significativa deve ser vista com ceticismo, já que é baseada em
dados de renda nominal e além disso exclui — por conta de regras
estatísticas — os que estão na ponta, ou seja, os super ricos; mais
fundamentalmente, ignora a apreciação de capital e o esconderijo de
ganhos financeiros no topo da pirâmide.
Como um dos estudos importantes, Declining Inequality in Latin America,
nota nos levantamentos sobre domicílios, “a renda com imóveis é
grosseiramente subestimada”: “Se os que estão no topo da pirâmide de
renda, ignorados por pesquisas, experimentarem um grande aumento
relativo aos demais, então a verdadeira dinâmica da desigualdade pode
ser de crescimento, mesmo quando pesquisas por estimativa mostram o
resultado oposto”.
No Brasil é estimado que entre 10 e 15 mil famílias recebam a parte
do leão nos pagamentos anuais de R$ 392 bilhões da dívida pública (o
custo do Bolsa Família está entre R$ 20 e 30 bilhões), enquanto o número
de milionários se multiplicou na última década, como nunca antes. A
explosão do mercado de ações deveria servir de alerta contra a
ingenuidade neste campo. Os ricos estão bem alertas sobre qual lado de
seu pão recebeu manteiga. Ao contrário da “monarquia econômica” atacada
por Roosevelt, que detestava o New Deal, a maior parte dos financistas e
empresários brasileiros deu apoio caloroso ao governo Lula. O capital
não foi apenas mais lúcido que a — verdadeira — classe média, mas se
sentiu muito mais confortável com o governo Lula do que com qualquer
regime prévio: de forma lógica, já que o lucro nunca foi tão alto.
Para uma terceira interpretação do Lulismo [Nota do Viomundo:
sendo a primeira a de FHC e a segunda a de Singer], estes lucros
precisam colocados no centro de qualquer análise realista do sistema
lulista de governo. Numa série de ensaios iconoclastas, o sociólogo
Chico de Oliveira desenvolveu uma visão que é quase a antítese da de
[André] Singer, com o qual ele continua tendo uma boa relação apesar de
diferenças políticas (um dos fundadores históricos do PT, Oliveira
deixou o partido desgostoso pouco depois de Singer ter assumido um cargo
no governo Lula).
Oliveira não contesta a caracterização de Singer sobre a psicologia
dos pobres, ou as melhorias trazidas para eles por Lula. O
sub-proletariado é como Singer o descreve: sem ressentimento com os
ricos, satisfeito com alívios modestos e graduais de suas condições de
existência. Mas a tese de Singer, na visão de Oliveira, foca muito
estreitamente no relacionamento entre Lula e a massa de seu eleitorado.
Faltam dois parâmetros fundamentais para entender o Lulismo.
O primeiro é o momento na história do capital mundial em que Lula chegou ao poder.
A globalização cortou qualquer possibilidade de um projeto de
desenvolvimento nacional inclusivo há muito tempo pretendido pelo
Brasil, inclusive pelo próprio Lula. A terceira revolução industrial,
baseada em avanços biológicos e digitais que eliminam a fronteira entre a
ciência e a tecnologia, requer investimento em pesquisa e impõe
patentes que não permitem transferência pronta de seus resultados para a
periferia do sistema — menos ainda para um país como o Brasil, onde o
investimento nunca foi, mesmo no pico do desenvolvimentismo sob
[Juscelino] Kubitschek nos anos 50, mais que baixos 22% do PIB. Gastos
com Pesquisa e Desenvolvimento continuam miseráveis.
Assim, em vez de avanço industrial, a consequência para o Brasil da
última onda de revolução tecnológica foi a transferência da acumulação
do setor manufatureiro para as transações financeiras e a extração de
recursos naturais, com rápido crescimento do setor bancário, onde os
lucros são maiores, e da mineração e agronegócio de exportação. O
primeiro é uma involução, pois desvia investimento da produção; o
segundo é uma regressão, levando o Brasil de volta a ciclos anteriores
de dependência da exportação de commodities primárias, para sustentar o
crescimento.
Foi à dinâmica destes setores que o Lulismo teve de se ajustar, ao se acertar com o capital.
Aqui fica o segundo parâmetro mencionado por Oliveira, já que
resultou na transformação das estruturas sob as quais o Lulismo tinha
emergido — o partido e os sindicatos que, depois de 2002, se tornaram o
aparato de poder. A liderança da CUT, a confederação do trabalho, foi
colocada no comando do maior fundo de pensão do país. Os quadros do PT
colonizaram a administração federal, onde o presidente tem o direito de
nomear ocupantes de cerca de 20 mil empregos bem pagos, muito mais que o
sistema permite ao Executivo nos Estados Unidos.
Agora totalmente desligado da classe trabalhadora, este estrato foi
inexoravelmente sugado no vortex da financeirização que engolfou tantos
os mercados quanto as burocracias. Sindicalistas se tornaram gerentes de
algumas das maiores concentrações de capital no país, cenário de
batalhas ferozes por controle ou expansão entre competidores predadores.
Militantes se tornaram funcionários, aproveitando — ou abusando — de
toda mordomia dos cargos.
Quando a nova lógica de acumulação se combinou com uma nova
inscrustração no poder, uma camada social híbrida foi formada — Oliveira
a compara ao ornitorrinco, cujo habitat natural é a corrupção. Os
pobres desorganizados da economia informal agora tinham se tornado a
base eleitoral de Lula, e ele não poderia ser censurado por isso ou pelo
neo-populismo de sua relação com eles, inevitável também para Chávez ou
Kirchner. Mas entre o líder e as massas havia um aparato que se
deformou.
Ausente na tese de Singer estava este lado escuro do Lulismo. O que
Lula tinha obtido era uma espécie de hegemonia invertida. Onde, para
Gramsci, a hegemonia numa ordem social capitalista resultava da
ascendência moral dos proprietários sobre as classes trabalhadoras,
assegurando o consentimento dos dominados para sua própria dominação, no
Lulismo foi como se os dominados tivessem revertido a fórmula, obtendo o
consenso dos dominadores para sua liderança na sociedade, apenas para
ratificar as estruturas de sua própria exploração.
Uma analogia mais apropriada [para o Brasil e o Lulismo] não seria
com os Estados Unidos do New Deal, mas com a África do Sul de Mandela e
Mbeki, onde as iniquidades do apartheid foram descartadas e os líderes
da sociedade agora são negros, mas onde as regras do capital e suas
misérias continuam tão implacáveis quanto sempre foram. O destino dos
pobres no Brasil tinha sido viver numa espécie de apartheid e Lula
acabou com isso. Mas o progresso igualitário e inclusivo continuou longe
do alcance.
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